Memórias
de um Sargento de Milícias
surgiu como um romance de folhetim, ou seja, em capítulos, publicados semanalmente no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, entre junho de 1852 e julho de 1853. Os folhetins não indicavam quem era o autor. A história saiu em livro em 1854 (primeiro volume) e 1855 (segundo volume), com autoria creditada a “Um Brasileiro”. O nome de Manuel Antônio de Almeida
aparecerá apenas na terceira edição, já póstuma, em 1863.
ENREDO
Por ser originariamente um folhetim, publicado semanalmente, o enredo necessitava prender a atenção do leitor, com capítulos curtos e até certo ponto independentes, em geral contendo um episódio completo. A trama, por isso, é complexa, formada de histórias que se sucedem e nem sempre se relacionam por causa e efeito.
“Filho de uma pisadela e de um beliscão” (referência à maneira como seus pais flertaram, ao se conhecer no navio que os conduz de Portugal ao Brasil), o pequeno Leonardo é uma criança intratável, que parece prever as dificuldades que irá enfrentar. E não são poucas: abandonado pela mãe, que foge para Portugal com um capitão de navio, é igualmente abandonado pelo pai, mas encontra no padrinho seu protetor. Esse é dono de uma barbearia e tem guardada boa soma em dinheiro.
A origem pouco digna desse capital – o barbeiro desviou a herança que um capitão moribundo deixara à sobrinha – só será revelada posteriormente. A fórmula “arranjei-me” sintetiza, no romance, a explicação dada pelo barbeiro para a posse do dinheiro. O autor acaba por dizer que muitos “arranjei-me”, equivalentes ao atual “jeitinho brasileiro”, se explicam assim, e estende essa representação de sua história a toda a sociedade da época.
As aventuras e desventuras de Leonardo, que o autor faz desfilar diante dos leitores com dinamismo, conduzem o protagonista a apuros dos quais ele sempre se salva, graças a seus protetores. Leonardo é um personagem fixo no romance, suas características básicas não mudam.
TEMPO
A história se passa no começo do século XIX, ocasião em que a família real portuguesa se refugiou no Brasil. Por isso, o romance tem início com a expressão “Era no tempo do rei”, referindo-se ao rei português dom João VI. Essa fórmula também faz referência – e isso é mais relevante para entender a estrutura do romance – aos inícios dos contos de fada: “Era uma vez...”
NARRADOR
Apesar do título de “memórias
”, o romance não é narrado pelo personagem Leonardo, e sim por um narrador onisciente em terceira pessoa, que tece comentários e digressões no desenrolar dos acontecimentos. O termo “memórias
” refere-se à evocação de um tempo passado, reconstruído por meio das histórias por que passa o personagem Leonardo.
ORDEM E DESORDEM
Duas forças de tensão movem os personagens do romance: ordem e desordem, que se revelarão características profundas da sociedade colonial de então.
A figura do major Vidigal representa o polo que, na história, cuida da ordem: “O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração
; era o juiz que dava e distribuía penas e, ao mesmo tempo, o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua justiça não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processos; ele resumia tudo em si (...)”.
A estabilidade social representa a ordem, enquanto a instabilidade se refere à desordem. Dessa forma, o barbeiro, completamente adequado à sociedade, ao revelar as origens pouco recomendáveis de sua estabilidade financeira, evoca no seu passado a desordem.
Personagens como o major Vidigal, a comadre, dona Maria e o compadre pertencem ao lado da ordem. Mas os personagens desse polo nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável.
O polo da desordem é formado pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. A acomodação dos personagens, tanto na ordem como na desordem, está sujeita a uma mudança repentina de polo, ou seja, não existe quem esteja totalmente situado no campo da ordem nem no da desordem. Não há, portanto, uma caracterização maniqueísta dos tipos apresentados.
O major Vidigal, por exemplo, um típico mantenedor da ordem, transgride o código moral ao libertar e promover Leonardo em troca dos favores amorosos de Maria Regalada.
ROMANCE MALANDRO
Nos estudos sobre a obra, houve uma linha de interpretação que, seguindo as indicações de Mário de Andrade, e tendo como base o enredo episódico do livro, classificou o romance como uma manifestação tardia do “romance picaresco”, gênero popular espanhol medieval dos séculos XVII e XVIII.
O gênero picaresco – do qual o mais ilustre representante é o romanceLazareto de Tormes – caracteriza-se por narrar, em primeira pessoa, os infortúnios de um pícaro, um garoto inocente e puro que se torna amargo à medida que entra em contato com a dureza das condições de sobrevivência. Por isso procura sempre agradar a seus superiores. O pícaro tem geralmente um destino negativo, acaba por aceitar a mediocridade e acomodar-se na lamentação desiludida, na miséria ou num casamento que não lhe dá prazer algum.
Nenhuma dessas características está presente em Memórias
de um Sargento de Milícias
. Leonardo não é inocente. Ao contrário, parece já ter nascido com “maus bofes”, como afirma a vizinha agourenta. Também não é totalmente abandonado, tendo sempre alguém que toma seu partido e procura favorecê-lo.
Ele ainda desafia seus superiores, como o mestre-de-cerimônias e o Vidigal. Por fim, Leonardo não encontra um destino negativo, pois se casa com o objeto de sua paixão (Luisinha, a sobrinha de dona Maria), acumulando cinco heranças e granjeando uma promoção com o major Vidigal.
Existem, de fato, algumas semelhanças entre Leonardo e os personagens picarescos. Uma é a atitude inconsequente do protagonista, que o leva, por exemplo, a esquecer-se rapidamente de Luisinha ao conhecer Vidinha. Depois, o amor antigo retorna, mas nada dá a entender que não possa acabar novamente. Essas semelhanças, porém, são superficiais, por isso é problemática a classificação de Memórias
de um Sargento de Milícias
como romance picaresco.
O que se vê é que Manuel Antônio de Almeida
foge completamente ao idealismo romântico de sua época. Se há traços românticos em sua obra, eles estão no tom irônico e satírico que assume o narrador.
A conclusão possível é que estamos diante de um novo gênero nacional, que se constrói em torno da figura do malandro, personagem que tem influências popularescas, como Pedro Malasarte; mas é urbano e relaciona- se socialmente com as esferas da ordem e da desordem, já citadas.
É mais apropriado, por isso, classificar essa obra como um “romance malandro”, de cunho satírico e com elementos de fábula. Esse gênero frutificará em vários romances posteriores, como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.
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